Monday, 23 April 2018 06:00

FILOSOFIA E GLOBALIZAÇÃO

A unificação da filosofia europeia – O problema da globalização da filosofia parece-me estreitamente ligado ao de uma língua filosófica comum a todo o planeta. Ele apresenta-se, por isso, como o retorno a uma condição que a filosofia conheceu durante dois mil anos, na qual esta, felizmente, gozou de uma língua universal, o latim, que, à primeira vista, não parecia adequada a este fim. Desde o De natura rerum de Lucrécio até à tese defendida por Henry Bergson em 1889 (Quid Aristoteles de loco senserit) passam, de facto, vinte séculos nos quais o latim foi não apenas a língua comum que uniu o mundo ocidental, mas também o idioma no qual, ainda em plena época moderna, escreveram Descartes, Espinosa e Leibniz. Como se disse, nada fazia prever esta grande fortuna histórica da língua latina, de cuja pobreza e rudeza, em comparação com o grego, se lamentavam Cícero e Séneca, os dois grandes criadores do léxico filosófico latin.
No momento em que este papel universal é assumido pelo inglês, os três séculos de filosofias nacionais parecem um parêntesis destinado a fechar-se em breve. Contudo, este retorno a uma língua comum desperta muitíssimas dúvidas e importantes interrogações. A condição de uma abordagem metodológica não ingénua à filosofia passa pelo estudo da palavra singular e da comparação do modo como é traduzida nas outras línguas. Muitos termos da linguagem filosófica estão assim tão estreitamente ligados à língua na qual são elaborados conceptualmente que resultam intraduzíveis, ou traduzíveis apenas através de um deslizamento do significado de que é preciso estar consciente. Resulta daí que não há conceito sem palavra: esta última pertence a uma língua específica que nasceu e se desenvolveu historicamente. A palavra singular não é de todo o signo de um conceito, mas está radicada nas línguas. A tal metodologia dedica-se uma grande obra recentemente publicada, o Vocabulaire Européen des Philosophies. Dictionnaire des Intraduisibles, realizado sob a direcção de Barbara Cassin. Esta é um exemplo notabilíssimo deste tipo de abordagem metodológica aos problemas da filosofia, que tem no Vocabulaire des institutions indo-européennes, o seu modelo inspirador.
Como Barbara Cassin explica na introdução, tal metodologia implica a recusa do universalismo lógico que afirma a existência de um universal lógico, idêntico em todos os lugares e em todos os tempos: pouco importa a língua em que é dito. O modelo em que o universalismo lógico se inspira é a lógica matemática: na impossibilidade de uma formalização radical da linguagem filosófica, o uso de um inglês internacionalizado (ou seja, privado das suas características literárias) constitui um compromisso aceitável para os tempos modernos, exercendo assim uma função análoga à da viragem do latim durante quase dois mil anos. É esta a escolha da corrente analítica da filosofia contemporânea, a qual – segundo Barbara Cassin – une “o angelismo do racional com o militantismo da linguagem comum”.
Ao mesmo tempo, a metodologia seguida por esta obra recusa a posição oposta ao universalismo lógico, o nacionalismo ontológico, o qual enfatiza a relação entre a filosofia e a língua, chegando a considerar a meditação filosófica como inseparável da língua em que se manifesta. Os conceitos estariam assim radicados de tal modo na experiência colectiva de um povo que cada tradução ou descontextualização daria lugar ao equívoco e ao malentendido. A atitude de suficiência e de altivez com que são percebidos, pelas grandes culturas nacionais, os contributos que lhes dizem respeito provenientes de estrangeiros é, aliás, um sintoma muito significativo de tal atitude, quase como se qualquer um estivesse legitimado apenas a falar dos autores que pertencem à sua língua materna. Segundo os defensores do nacionalismo ontológico, as línguas filosóficas por excelência seriam o grego, para a antiguidade, e o alemão, para a modernidade.
A abordagem metodológica que inspira este vocabulário configura-se como uma terceira posição alternativa, face às duas anteriores. Este estuda os principais sintomas de diferença entre as línguas e vai à procura dos termos que, nas línguas europeias, apresentam caracteres tão particulares que se tornam intraduzíveis. Ao mesmo tempo, interroga-se sobre a especificidade da linguagem filosófica das culturas nacionais singulares: o francês, o inglês, o alemão, o italiano, o espanhol, o russo, o português e o grego constituem outras tantas vozes autónomas, enquanto o grego antigo, o latim, o hebraico e o árabe são tratados na entrada “Línguas e tradições”. São dois os pressupostos teóricos sobre os quais este vocabulário está construído. Em primeiro lugar, em cada termo filosófico de qualquer língua existe uma tensão entre a pretensão de universalidade do conceito e a sua expressão linguística: é justamente nessa tensão que se baseia a especificidade da linguagem filosófica em relação a qualquer outra. Em segundo lugar, cada língua abre para um modo particular de ver o mundo e contém um inteiro sistema de conceitos que remetem uns para os outros.
Assim, deu-se um primeiro passo em direcção à superação das filosofias nacionais; no entanto, estamos ainda bem longe de chegar à unidade europeia da filosofia, que não deveria consistir tanto no uso de uma língua comum elementar e privada das suas características literárias quanto no reconhecimento da dignidade filosófica de todas as línguas. No interior da Europa, é muito diverso o peso do núcleo duro da cultura filosófica moderna, constituída pelo francês, pelo alemão e pelo inglês, em relação a culturas filosóficas marginais como as italiana, russa, espanhola, portuguesa... No entanto, é importante que o contributo destas culturas não seja perdido e que estas línguas sejam estudadas nos seus caracteres específicos, como indicadores de um modo particular de pensar.
Trad. Alexandre Franco de Sá
Copyright©MarioPerniola,2005

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